Por Celso Augusto Uequed Pitol
Começo esta entrevista com uma informação pessoal: meu entrevistado desta semana, meu amigo Jairo Luis Cândido, foi um dos professores mais importantes para a minha formação. E personalizo porque estou certo de que falo por centenas, talvez milhares de outros alunos que com ele tiveram aula ao longo dos anos e partilham desta opinião. Conheci-o no primeiro ano do Ensino Médio do Colégio La Salle, quando iniciava o preparo para o vestibular e o ingresso na vida universitária, com todas as incertezas e as expectativas que acompanham este importante processo. Homem de opiniões firmes sobre vários temas dentro e fora de sua disciplina de atuação – temas que, amigavelmente, tive o prazer de discutir em diversas oportunidades -, Jairo nunca tolheu, nem por um momento, aqueles que, como eu, nem sempre concordavam com ele: ao contrário, dizia sempre para desenvolvermos idéias próprias e bem fundamentadas, independentemente de quais fossem. No campo escolar propriamente dito, foi com ele que tivemos as primeiras noções do que é uma pesquisa séria e do que é estudar em nível acadêmico, independente da área que iríamos escolher. E tudo isto, importante ressaltar, ainda no Ensino Médio.
Nunca fui dos seus melhores alunos no que diz respeito às notas, apesar de nunca ter tido problemas para passar. Já na altura ficava claro que o caminho que eu escolheria teria pouco a ver com a Biologia. Jairo, legítimo vocacionado que era, felizmente nunca abandonou este caminho. Tornou-se professor do Unilasalle e hoje é coordenador do curso de Biologia daquela instituição, além de membro do Conselho Municipal de Meio Ambiente, onde procura pôr em prática o que nos ensinou nas aulas do Terceiro Ano sobre biocenose, ecossistema, biosfera e outros conceitos importantes que nunca esqueci. Pensando bem, até que eu não era um aluno tão ruim assim.
Quando vieste para Canoas?
Jairo Luís Cândido: Eu nasci em em 1966, em Porto Alegre. Morávamos no Sarandi e, em seguida, nos mudamos para o Jardim do Sal. Até os 30 anos morei por ali. Aí casei, vim morar em Canoas , morei 1 ano e meio aqui, retornei a Porto Alegre e, há dois anos, voltei a morar em Canoas.
Como surgiu o teu interesse pela Biologia?
JLC: A idéia era fazer o curso técnico em eletrônica no Parobé. No final dos anos 70 e inicio dos anos 80, havia no Brasil um grande incentivo para as chamadas áreas técnicas. Lembro que existiam várias publicações de revistas para adolescentes que ensinavam a fazer bugigangas de papel reciclado, fazer um radinho, fazer um controle, pegar uma saboneteira e dois componentes e fazer um brinquedinho, e eu me encantei com aquilo. Aí fui fazer eletrônica no Parobé e, quando vi o que era realmente estudar eletrônica, me desencantei. Vi que não era a minha praia. Desencantei-me e descobri o encantamento que eu tinha com a biologia. Eu nunca estudava biologia, nunca lia nada de biologia e ia sempre muito bem nas provas, muito melhor do que as disciplinas que tinham a ver com eletrônica. Então decidi fazer vestibular para biologia. Comecei o curso em 1985 e saí em 1991.
A tua geração foi a primeira geração a entrar na universidade após a democratização do país.
JLC: As coisas já eram feitas às claras, mas existia uma aura pesada. Eu lembro que tinha gente com muito medo para participar do movimento estudantil, até pela influência dos pais. E uma das coisas que eu vivenciei no curso universitário, além de pesquisa, foi diretório acadêmico. Dos seis anos e meio em que eu estive lá, quatro eu estive em diretório acadêmico, uma vez como vice, outra como presidente e depois como secretário. Tive muito envolvimento com o DA da biologia, com o DCE da UFRGS e participei em reuniões da UNE. Lembro que, nos dois primeiros anos de curso, meu pai tinha muito medo. Ele dizia: “estão fotografando vocês, estão mapeando, vão pegar vocês na rua” e eu ouvia muitos comentários de colegas falando a mesma coisa, que os país alertavam para isso. A geração dos meus pais viveu isso de maneira muito forte e tinham medo. E via uma gurizada com 18 anos na faculdade dizendo que ia mudar o mundo, até cair na real que a gente primeiro muda o nosso quintal e depois começa a influenciar o quintal do vizinho. Só depois disso pode começar a pensar num mundo melhor. Todo jovem pensa que pode mudar o mundo a partir dele. A questão é que o meu mundo é diferente do dele, e aí começam os problemas (risos). Mas, dentro da universidade, a possibilidade de manifestação dava a sensação de poder fazer, mas ainda havia um pé atrás. E sempre o bafo na nuca, dizendo que algo podia acontecer.
As conseqüências de uma ditadura vão para além do fim da ditadura…
JLC: Exato. A sensação psicológica de medo continuava. Havia a sensação de liberdade , mas o percentual de pessoas que se envolviam no movimento estudantil de fato, fazendo a política estudantil, era muito pequeno. Eu não participava, só assistia o movimento: a política partidária era algo que não estava no meu mundo e, além disso, eu tinha uma influência de casa para não participar deste mundo. Quando entrei na UFRGS, tive um choque: começamos a conviver com outras pessoas, outras visões de mundo. Mas, quando estive como presidente do DA, eu mantive a idéia de que o movimento estudantil não deveria se partidarizar, e sim criar condições para conscientizar os estudantes.
Como assim?
JLC: Do tipo: “queres ter uma linha partidiária? Tenha, mas a partir de crítica construída que não tenha o viés única exclusivamente político-partidiário. Vais escolher depois de teres construído uma crítica a situação”. Existiam tentativas de manipular e conseguir apoios políticos para os partidos. E todos os partidos – eu friso: todos – faziam isso. Eu fui vice e presidente no momento em que se estava tentando reconstruir o diretório junto aos estudantes. Na virada dos anos 80, quando surgiu o PT e começam as disputas entre as antigas e novas esquerdas, começou uma coisa de entrar partido político no diretório acadêmico. Quem não seguia era considerado pelego por esses grupos, era pró-ditadura. Isso quando eu entrei já era assim e anos antes também era. Os alunos não queriam porque participar do diretório era estar vinculado a algum partido político. A minha entrada foi, então, sem qualquer vinculação com partido. Aliás, quando entrei no diretório em final de 1985, me convidaram a entrar como vice, justamente porque eu tinha uma boa relação com todos os alunos independente de vinculação partidária. O candidato a presidente não era filiado a partido algum, era simpatizante do PT mas não queria partidarismo no diretório, e eu concordei por isso. E do outro lado, queriam partidarizar o diretório, e eles já estavam lá havia 2 ou 3 legislaturas. Isso estava esvaziando o diretório, porque virava uma discussão deles com eles mesmos. Nossa proposta era de renovar e trazer o DA para as discussões de dentro do curso. Política externa não interessava. Era para discutir o que tinha de problemas dentro do curso, como a cadeira quebrada na sala de aula. E teve guerras, porque teve chapa do PCB, da extrema esquerda do PT, a chapa apartidária, que era a nossa, e nós ganhamos de lavada. O pessoal se identificou com nosso discurso. E começamos a trazer de novo o pessoal para dentro.
A geração dos 80 tinha realmente mais engajamento?
JLC: Olha, eu diria que aquela geração era mais engajada que as posteriores. Tinha, porém, um percentual relativamente grande de alunos que eram “alienados”, mas o percentual que se engajava era maior que o de hoje. E faziam barulho. O que acontecia tinha repercussão. Em termos de UFRGS como um todo, o movimento era bastante grande. O curso de Biologia, que eu vivenciei naqueles dois primeiros anos, o pessoal queria primeiro pensar o curso, os estudantes, o Instituto de Biociências, mas na UFRGS em geral e essas disputas das esquerdas era muito forte e marcante. Dentro da Biologia era um pouco diferente, porque todos estavam cansados de ver um discurso que não tava levando a lugar algum. Em 1985, 86, a gente começa a trazer estudantes pra volta do diretório. Lembro de gente dizer que, pela primeira vez, entrava no diretório e estava adorando, porque achava que ali não tinha nada de bom para essas pessoas. A coisa foi se espalhando, a gente começou com coisas simples e fora do contexto de discussão política e, aos poucos, trouxemos essas discussões para dentro.
E tu ficaste na presidência do D.A. até quando?
JLC: Até 1987. Depois, meio que me afastei, saí das diretorias e entrou outro grupo, que foi oposição à chapa que eu apoiei, e me diziam que eu queria manter poder por trás. Mas, resumindo, a idéia que eu tinha era de discussão interna, sim, discussão de movimento estudantil, mas não a partidos políticos no D.A. Foco nos alunos.
Saíste da faculdade em 1991. De repente, vislumbras a tua vida com a inflação explodindo, a vida sem poupança, com um país destruído economicamente. Como era conseguir emprego?
JLC: Faltando dois meses para eu me formar, bateu a crise. Eu parei no prédio,no saguão – nunca vou esquecer a cena – na escadaria de mármore. Justamente ali, na minha primeira matricula eu conheci aquele que é um dos meus melhores amigos , José Artur Bogo Chies. Bom era época da crise, eu sentei e pensei: “o que vou fazer da minha vida?”. Formar-se é levar um tombo, é passar de elite intelectual para problema social. As escolas pagavam pouco, a inflação comia o salário, era um contexto bem complicado. Além disso, para conseguir uma boa escola precisava de experiência e contatos. Quando eu estava me formando, eu notei que havia chegado aos meus 24 anos e não tinha emprego. Comecei a entrar em pânico. Em 10 de novembro de 1991 eu me formei. No final do novembro de 91 o José Artur, o Zeca, me procura e diz “olha, fui selecionado para fazer doutorado na França, e tenho que ir embora no ano que vem. Preciso de alguém para assumir a escola em que estou trabalhando”. Era uma escola em Cachoeirinha. Foi lá que consegui o meu primeiro emprego. Eu fiquei pouco tempo desempregado. Tive muita, mas muita sorte, muito mais que a maioria dos meus colegas. Em fevereiro, abriu concurso para o município de Guaíba e então fiquei numa escola particular em Cachoeirinha e numa em Guaíba. Depois me exonerei do município por causa de uma bolsa de pesquisa – fui chamado de louco por isso, aliás – e então surgiu a idéia de fazer arquitetura. Fiquei 3 anos lá e a minha idéia era trabalhar com planejamento urbano e desenvolver cidades ecologicamente sustentáveis, mas na época essas discussões – que hoje são muito presentes – estavam recém-começando. Voltei para a Biologia fazer mestrado em zoologia. Comecei em 1997 e em funções de várias situações, conclui em 2001. Em 2002 comecei a dar aula aqui no Unilasalle, sendo que já dava aula no colégio havia anos.
A perspectiva de ser professor era clara para ti, como aluno de graduação?
JLC: Não. Na época não precisava optar licenciatura e bacharelado no inicio. Podíamos seguir sem opção até o final do curso. Como eu não fiz opção clara, sempre me eram ofertadas todas as disciplinas de todas as ênfases. Então, eu fiz uma daqui, outra de lá e acabei concluindo a licenciatura primeiro.Entrei querendo trabalhar com cetáceos, golfinhos, baleias e, na primeira disciplina de zoologia, descobri protozoários, esponjas e corais e me apaixonei instantaneamente. Trabalhei como monitor desta disciplina e ali comecei a dar aula, substituindo a professora algumas vezes. Ali eu comecei a pegar gosto pela sala de e não parei mais. Descobri, olha, é legal dar aula. Então fui para a licenciatura.
Acredita em vocação para dar aula?
JLC: Não sei se exatamente a palavra vocação, porque às vezes essa coisa da vocação pode dar a idéia de que tem que se dar o sangue por isso e não reclamar, mas eu sinto, sim, que dar aula não é para qualquer um. Ser professor não é para qualquer pessoa.
Queria falar um pouco da educação ambiental. Atuas nessa área no Conselho Municipal de Meio Ambiente. Estamos vivendo muito recentemente a rediscussão da questão da energia nuclear, até pelo que ocorreu no Japão. É uma situação limite, mas que não começou ontem, nem ontem nem anteonem. Queria que falasses um pouco da necessidade deste momento em se investir na educação ambiental.
JLC: Para mim, só há possibilidade de mudança social a partir da educação, em todos os sentidos. E a educação ambiental tem uma importância fundamental para que a sociedade acorde e para que as gerações futuras aproveitem os frutos dos esforços feitos hoje. Eu preciso enxergar o mundo com outros olhos. Não posso mais querer tudo para mim. É preciso aprender a partilhar com o outro. Somos bombardeados todos os dias para o individualismo, para pensar que temos de pensar em nossas necessidades e o resto que se exploda. Então, não é algo simples de se fazer, e não é com uma receita de bolo que se pode fazer. Como qualquer trabalho que se faz com educação é um trabalho de longo prazo. É um trabalho que mexe com paradigmas da sociedade, é mudar visão de mundo, é mudar a maneira como eu encaro a sociedade. Essa discussão vai de coisas simples a bem complexas, da discussão da matriz energética para o meu pais até o que eu vou fazer com a sacolinha do supermercado. Pega de ponta a ponta, pega desde a sacolinha do super até discussão de política global. Há muitos setores em que podemos trabalhar, inclusive na escola. E tenho medo quando alguém diz que tem que ter uma disciplina de educação ambiental. Não, não tem. Educação Ambiental não pode ser só na feira de ciências, no dia da árvore, e sim em todos os dias, em todas as disciplinas, de alguma maneira. A educação ambiental é necessariamente interdisciplinar. Não adianta fazer um projeto em sala de aula se a escola continua imprimindo calhamaços de folhas só dum lado ou documentos internos que poderiam ser impressos dos dois lados. Então, um dos espaços que eu vejo para trabalhar a educação ambiental é escola. Mas , como eu disse, ela precisa deixar de ser coisa só do professor de biologia. Outros espaços são a sociedade civil organizada. Por isso, no Conselho Municipal de Meio Ambiente procuramos debater esses assuntos da maneira mais aberta possível, com a participação de toda a comunidade. Nossas reuniões são 100% abertas à comunidade, todos podem e devem assisti-las. Só assim, com participação, é que poderemos fazer alguma diferença.
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