Entrevista: Paulo César Magalhães-Campeão do Mundo pelo Grêmio em 1983

Fazia muito frio em Tóquio ao meio-dia de 11 de dezembro de 1983. O Grêmio preparava-se para enfrentar o Hamburgo e as instruções foram distribuídas como papéis a serem interpretados numa peça de teatro. A ordem para um jovem de 20 anos, morador da Igara, era aparentemente simples: cuidar o lado esquerdo da defesa do Grêmio como um cão de guarda. Simples só na aparência. Era uma tarefa dificílima e essencial para as pretensões tricolores, afinal, uma das armas mais conhecidas do Hamburgo era a bola aérea vinda do lado direito do seu ataque em direção à área. Uma arma que costumava ser mortal. Naquela tarde de dezembro de 1983, porém, o lado esquerdo da defesa do Grêmio não foi castigado por cruzamentos ou chegadas à linha de fundo. Aquele menino de 20 anos havia cumprido bem o seu papel. Alguns dias depois voltaria para Canoas com uma medalha no peito, a sensação do dever cumprido e o seu nome – Paulo César Magalhães – inscrito na história do Grêmio.

A entrevista que segue falará muito dos grandes momentos de Paulo César, no Grêmio , mas falará também de uma Canoas que o leitor mais jovem talvez não conheça e que aqueles com mais de 40 anos perceberão de imediato. É a cidade dos anos 60, 70 e início dos 80, com a rivalidade entre os bairros Mathias Velho e Igara, as dificuldades de transporte, e, principalmente, o futebol de várzea, àquela altura presente em praticamente todos os bairros. Esta Canoas, como dissemos, já não existe. Mas pelos filhos ilustres que teve, como Paulo César Magalhães e tantos outros, ela merece ser lembrada.

A entrevista foi realizada em janeiro de 2010.

És natural de Canoas?

PCM: Não, eu nasci em Livramento. Cheguei aqui com 9 anos.A Neide – minha irmã – jogava basquete. Meu pai – Osmar – foi jogador, meu irmão Osmar Fernando também foi – aliás, meu irmão era um craque, seu apelido era Osmar Gaúcho -, o meu sobrinho Thiago (zagueiro do Penafiel, de Portugal) também é, o Maicon, o Rafael (atualmente no Internacional) e o Paulo Cesar, que é filho do meu irmão e joga na seleção chilena, ele é chileno e joga no Colo Colo.

Osmar Magalhães, pai de Paulo César

E aqui em Canoas, onde jogou?

PCM: Aqui joguei no São Cristóvão, mas muito pouco porque era difícil achar espaço. O futebol em Canoas era muito forte. Era um celeiro da Dupla Gre-Nal, quando eles queriam um jogador, vinham até Canoas. Batista, Falcão, Djair, Cedenir, Luiz Felipe, Manuel, todos saíram daqui. Eu entrei no São Cristóvão da seguinte forma: no dia em que faltou um dos famosos, eles me botaram para jogar e me perguntaram qual posição eu jogava, disse que era zagueiro e eles me deixaram jogar. Um olheiro me viu, me levou para o Grêmio, fiz o teste, passei, entrei no mirim e depois fui convocado para a Seleção Infantil com 13 anos. E eu tinha que ir todos os dias ao Olímpico, pegava três ônibus. Então fui morar lá com 12 anos de idade, fui o primeiro infantil a morar lá. Jogavam o Alcindo, o Ancheta, o Tarciso Não cheguei a jogar com eles, mas hoje convivemos juntos quando jogamos com o Máster do Grêmio. O fato de desde pequeno viver no ambiente dum clube de futebol me ajuda no meu trabalho atual. Hoje eu faço um trabalho no Cerâmica em que eu trago a experiência daquela época. A organização, tudo. Fui campeão com a seleção de novos na França em 1981, no ano em que o Grêmio foi campeão brasileiro. Quando eu voltei da seleção de novos, o Seu Enio Andrade me colocou no time principal. O Paulo Roberto, o Renato e eu éramos chamados de Os 3 Mosqueteiros, ou seja, os três jogadores que subiram das categorias de base.

O Ênio Andrade marcou época. Até hoje falam dele como estrategista…

PCM :Ele que me lançou. Para mim, ele e o Telê Santana foram os melhores. O time que copia o que o seu Enio fazia geralmente chega bem nos campeonatos. O 4-4-2, com quadrado pelo lado esquerdo, eu fazia com o Tonho, com o Tarciso, ele fez o mesmo com o Palmeiras, com o Coritiba, onde chegou a ser campeão brasileiro. Tem treinadores que só sabem trabalhar com times milionários. O seu Ênio era diferente, ele pensava o jogo, te ensinava a fazer as coisas. Todo mundo acha que eu sou canhoto, mas sou destro. Quem me ensinou a bater com a esquerda foi o Paulo Lumumba para eu poder ter oportunidade no profissional, porque tinha muito zagueiro, Oberdan, Ancheta, gente muito boa, e um canhoto se destacaria. E o seu Enio foi quem exercitou isso em mim.

A várzea em Canoas era forte, não é?

PCM: Muito forte. Lá no Jardim do Lago tinha um campo e quem mandava os jogos ali era o Itororó. O São Cristóvão mandava os jogos onde é o Centro Olímpico (da Igara). Ali jogou também o Luiz Felipe Scolari. Naquele tempo havia muitos campos. O do Igara, o do Unidos…..onde hoje é aquele loteamento ali na Boqueirão era o campo do Independente. Quando cheguei no Grêmio todo o time titular do mirim era canoense. Rudinei, Zanata, Eduardo, o Marco Antonio, Marco Aurélio. O time todo era de Canoas, exceto o goleiro. E isso acontecia também no Inter. O Grêmio pegava o pessoal da Igara, Mathias, o Centro, a Rio Branco. O Inter pegava mais o pessoal de Niterói, da Estância.

Isso facilitava o aparecimento dos jogadores?

PCM: Facilitava, sim. Porque muita gente jogava e tinha muitos campinhos. Lá na Mathias tinha 300 campos, hoje se achar sete é muito. Muita gente saiu dali. No final de semana as ruas eram cheias de gente jogando bola. E vou te dizer, hoje Mathias é elite. Nós entrávamos apanhando e saíamos apanhando. A Igara tinha fama de ser classe alta, só que tinha também a vila, e nos éramos da vila. A gente descia lá na Mathias e o pau comia. Tinha uma rivalidade muito grande entre os dois bairros e entre o futebol dos dois bairros.

Mas hoje a várzea parece ter pedido espaço.

PCM: Ela não perdeu, ela acabou. Hoje o que prolifera é a escolinha, mas não se ensina a jogar futebol, quem diz isso está mentindo. O que se pode fazer é aprimorar, ensinar a cabecear de olho aberto, ensinar a bater de pé esquerdo, mas isso só pode ensinar quem jogou, que nunca viveu isso não pode. Hoje a grande maioria dos professores de escolinha são formados em Educação Física e para ensinar é preciso ter sido jogador. Por isso, quando o guri chega a um clube ele chega com defeitos e aí a carreira dele tranca. Porque ele vai perder para os que são formados dentro do clube. E lá só tem ex-jogador ensinando os guris. Aí o cara que vem da escolinha perde. Antigamente tinha muito campinho livre, todo terreno vazio virava campo. Além disso, Canoas era cidade-dormitório, as pessoas trabalhavam em POA e dormiam aqui. Hoje dormem e vivem aqui. Então isso fez com que ocupassem espaços pra construir e a várzea acabasse. E isso aconteceu em todo o país. As próprias categorias de base não são mais de jogadores daqui. Isso faz perder a identidade. Tu não conheces o teu vizinho, a cidade, o próprio time. O Grêmio faz avaliação em dois mil garotos por mês. Tanto é que os apartamentos na volta do Olímpico são cheios de pensões. A família vai pra lá para acompanhar por 30 e 60 dias, chegam a vender tudo o que têm. O futebol virou comércio. O nosso clube ainda está um pouco nessa de romantismo, de querer servir à comunidade, essas coisas.

O ano de 1981 foi do primeiro título brasileiro. Como era chegar à final com um time que tinha mais de metade da seleção brasileira, o São Paulo?

PCM: O Grêmio era sempre forte, forneceu jogadores pra seleção em copas, mas nunca tinha ganho nada nacionalmente. E quando olhavam aqui para o sul sempre desdenhavam. Em 1981 eu voltava da Espanha, onde estava com a Seleção de Novos e o Grêmio também estava chegando . O Dirceu tava machucado e só tinha o Casemiro de lateral esquerdo. Então eu pedi para o seu Verardi para me colocar no vôo. O primeiro jogo foi aqui 2 x 1. Nós nem tínhamos esperança de ganhar. O São Paulo era uma verdadeira seleção.

E a Libertadores de 1983?

PCM: Bom, naquela Libertadores o nosso time era bem jovem ,muitos vinham das categorias de base. O jogo mais duro foi contra o Estudiantes de La Plata, que ficou famoso pelas barbaridades que aconteceram . Para começar, o estádio era uma vergonha. Era colado ao campo, as grades de proteção iam para frente e para trás por causa da torcida deles. Voava de tudo para dentro do gramado. O bandeirinha acabou sendo atingido e caiu. Depois, no intervalo, fomos para o vestiário – que era minúsculo – e depois voltávamos para o campo num corredor muito pequeno, em que não passavam dois jogadores do mesmo tempo. Saímos quase o mesmo tempo que eles. Quando entramos, vimos que faltava um jogador nosso. Era o Caio. Deram um chute nele, ele ficou caído lá atrás e ninguém viu, não podíamos fazer nada. Tivemos que substituir. E no campo os jogadores babavam, os caras entravam assim mesmo, sem medo de nada. Mesmo assim, fizemos 3 x 1. Mas aí tivemos que deixar empatar – 3 x 3 – mesmo com os jogadores deles sendo expulsos, porque estavam batendo sem dó e o juiz teve muita coragem em expulsar. Eu achei que não fosse sair vivo dali. No fim, ficamos dependendo de um empate deles com o América de Cali para chegarmos à final. E foi o que aconteceu. Na final, eu vou dizer, o Peñarol era melhor do que nós tecnicamente. Tinham o Fernando Morena, um dos melhores centroavantes do mundo naquela época, o nosso Jair, que era do Inter, o Saralegui, o Venâncio Ramos, que era craque……e eles tinham sido campeões do mundo no ano anterior. O nosso time era jovem, não tinha nem perto da experiência internacional deles, mas a nossa vontade era muito grande. O Renato ajudava na lateral, o Tita, que era pequeno, correu o campo todo, se doou, jogou demais naquela final. Para tu teres uma idéia, teve um momento que nós tínhamos uns oito jogadores no ataque, quando atacávamos, e uns sete, oito, quando defendíamos. Povoamos os dois campos. No fim, aquele gol salvador do César, com o cruzamento inesperado do Renato.

E o Mundial?

PCM: Em 81, a gente viu o jogo do Flamengo contra o Liverpool na final do Mundial e dissemos “um dia vamos estar lá”. Dito a feito. Na preleção o Espinosa não falou do jogo. Falou o seguinte: “se vocês pensam que são os responsáveis por estarem aqui estão errados. Vocês são a ponta de uma trajetória que começou com o Lara”. Lembro que eles tinham um jogador enorme, era um alemão com cabelo de negro, um alemão negro (risos) eu tenho até a camisa dele. Para marcar tinha que ser um alto – e tinha que ser eu, porque eu originalmente sou zagueiro e não lateral – e eu era mais marcador, eu podia sair muito pouco, o Paulo Roberto podia sair mais. E não teve um cruzamento do meu lado. O Hamburgo era muito forte, metade era da seleção alemã. O Magath era um craque, tinha o Jakobs, o goleiro Stein, dentre outros. E ganharam da Juventus na final, que era uma espécie de “galáticos” na época. Mas tivemos o controle do jogo e acabamos vencendo com justiça. Jogamos muito melhor do que eles.

Costuma-se dizer que, no Brasil, ídolo não é valorizado. Isso é verdade?

PCM: Não é que não seja valorizado. O ídolo no Brasil é valorizado, sim, pelas pessoas. Quem não dá o devido valor é, muitas vezes, a imprensa. Lá nos EUA, por exemplo, bombeiro vira herói, aqui nunca acontece isso. Eles criam uma mística em torno de tudo, a TV mostra, enfim, a mídia cria a imagem do herói. Aqui a imprensa não faz isso. Sequer os brasileiros que morreram no Haiti quando estavam lá para ajudar aquele povo são tratados como heróis. E foram heróis. A imprensa não faz nada para que se crie uma imagem de herói, de ídolo. Mas mesmo assim as pessoas valorizam. Quer ver? Eu vou jogar com o Máster do Grêmio no interior do Estado e vão 2 mil pessoas pra ver uns velhos quem mal conseguem correr (risos). Somos tratados com carinho, somos ídolos para eles.

2 respostas em “Entrevista: Paulo César Magalhães-Campeão do Mundo pelo Grêmio em 1983

Deixe um comentário